1. A questão da moradia tem sido um problema que se agrava a cada ano, acompanhando o processo crescente de exclusão social, fruto de modelo econômico neoliberal de desregulamentação de mercados, privatizações e empobrecimento do Estado, o que tem favorecido o processo, hoje global, de concentração econômica. Importante notar que, com o processo de concentração econômica e o fortalecimento das corporações, um modelo econômico que valorize o ser humano, a geração de empregos dignos e a geração de oportunidades iguais se torna mais distante. Com o fortalecimento do poder econômico privado e o enfraquecimento do Estado, o Estado Social, que apresentou no seu início uma alternativa de assistencialismo para depois significar a possibilidade de inclusão em alguns países, também entra em crise, para alguns quase irreversível, principalmente pelas armadilhas que representam as constantes renúncias fiscais e modelos tributários que, no lugar de tributar quem pode pagar, isentam o grande capital e tributam o assalariado, o pequeno e médio empreendedor, justamente os setores que mais geram empregos. Quase todos os países que adotaram esse modelo a partir da década de 1980, hoje, buscam abandoná-lo, o que, no entanto, não é fácil.
2. Este é o pano de fundo de que administradores públicos, legisladores e magistrados não podem se esquecer quando constroem normas, que devem ser justas e só podem ser se partirem do caso concreto, levando em consideração, obviamente, o contexto histórico e socioeconômico em que ocorrem os fatos e compreendendo o Direito como um sistema de princípios e regras integral, portanto coerente. Não é possível construir uma solução justa sem compreender o contexto e sem manter a unidade e a coerência do sistema jurídico. Não pode o intérprete, bem como todos que seguem a ordem jurídica, achar que o Direito é mera receita de bolo na qual se aplica a lei esquecendo-se todo o seu entorno, seja jurídico seja histórico, bem como de sua finalidade e coerência. E, quando menciono que todos os acima citados constroem normas, quero dizer que a norma surge da interpretação, e a interpretação é inevitável, pois quando lemos a norma para aplicá-la ao caso concreto, inevitavelmente, a interpretamos. Essa idéia da hermenêutica pós-positivista é fundamental para a correta idéia de jurisdição constitucional e será o fundamento teórico da única solução justa que o caso comporta. Vamos, portanto, ao caso concreto.
3. Sob o viaduto Silva Lobo, em área de domínio público (Belo Horizonte), moram catadores de papel, lavadeiras, faxineiras, carroceiros, desempregados, seres humanos que exerceram durante sua vida de exclusão atividades as mais variadas, alguns deles há mais de quatorze anos. Para essas pessoas, foram negados quase todos os direitos fundamentais previstos na Constituição, como trabalho, saúde, educação, moradia, justa remuneração, pressupostos básicos para o exercício das liberdades públicas e individuais, uma vez que não há liberdade concreta sem meios para seu exercício, e os meios de exercício das liberdades são os direitos sociais e econômicos.
4. Essas pessoas, como muitas outras em nosso país, nos grandes centros urbanos, além de vitimas da exclusão, foram vítimas das violências do Poder Público, muitas delas em nome do interesse público. Inexplicavelmente, perante a lógica constitucional, essas pessoas as quais tudo foi negado ainda recebem a intolerância de quem diz agir em nome do Direito. De outro lado, muitas vezes receberam também políticas assistencialistas ineficazes, humilhação final, principalmente quando para recebê-las são obrigados a fazer o que não querem. Nesse momento, a última liberdade que lhes resta é arrancada: a liberdade de escolher se querem ou não continuar na rua.
5. Uma política pública para a população de rua que leve em consideração os direitos constitucionais não pode ser resumir ao assistencialismo, e isso implica a necessidade de dar voz a essas pessoas. Elas precisam mais do que voz, precisam ser parte na construção da solução do seu problema. De nada adianta removê-las do local onde se encontram e onde construíram seu referencial de vida, onde seus filhos freqüentam a escola e onde conseguem algum sustento para o alimento, oferecendo um terreno longe ou oferecendo-lhes dinheiro para o aluguel. Trata-se de simplificação que retira dessas pessoas o seu último direito, destruindo de vez sua dignidade que ainda pode sobreviver nas últimas escolhas que conservaram.
6. Os moradores do viaduto Silva Lobo, juntamente com organizações da sociedade civil, buscaram a solução para o seu problema. Trata-se de uma solução pública, encontrada de forma dialógica e, portanto, democrática. Com base em projeto concebido com a participação dos moradores, da Escola de Arquitetura da UFMG, do programa Pólos Reprodutores de Cidadania e da Pastoral de Rua, apresentaram proposta para ordenação daquele espaço urbano com a construção de habitações, uma cozinha coletiva e espaço para cuidar de animais.
7. O Município, representado pelo Secretário da Coordenação de Política Urbana e Ambiental, Murilo Valadares, inicialmente aceitou a idéia, segundo depoimento dos consulentes, prometendo, ainda, a doação de material para a edificação. Entretanto, como a doação não ocorreu a Pastoral de Rua, providenciou algum material de construção, iniciando-se a obra descrita no item anterior.
8. Agora, sem nenhuma explicação, o Município ameaçou destruir as construções iniciadas no local, sob o viaduto, sendo que recentemente ocorreu uma visita de agentes da Prefeitura e da Polícia Militar para a destruição da moradia dessas pessoas. Segundo a Constituição, esse espaço é o asilo inviolável dessas pessoas, sendo, portanto, essa ação da Prefeitura e da Polícia flagrantemente contrária ao ordenamento jurídico e, conseqüentemente, contra lei e a Constituição.
9. Depois de novas negociações, os representantes do povo do Município no Poder Executivo se mostraram dispostos a conversar, desde que recebessem formalmente o projeto arquitetônico e apresentassem uma avaliação jurídica bem fundamentada, para que então possam construir sem violar a Constituição e as leis, ou seja, o sistema normativo vigente.
10. Importante verificar que no local, entre os moradores do viaduto Silva Lobo, não há casos de violência ou qualquer outro tipo de crimes, bem como de consumo ou tráfico de drogas ou de pequenos furtos.
11. Finalmente, é necessário acrescentar que há na moradia sob o viaduto água ligada pela Copasa e os Correios forneceram o número do CEP.
SOLUÇÃO JURÍDICA
CONSTITUCIONALMENTE POSSÍVEL
1. O segundo passo para solucionar o caso, descritos os fatos e assentadas as bases teóricas e o pano de fundo histórico, é o de verificar quais princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais regulam a situação e deverão ser observados quando da construção da norma de conduta justa para o caso.
2. No plano constitucional, encontramos vários princípios que regulam o caso e são, obviamente, de observância obrigatória. É importante lembrar que, hoje, nenhum doutrinador sério, no Brasil e no mundo, nega o caráter normativo dos princípios e sua supremacia perante as regras constitucionais e infraconstitucionais, e isso se reflete na jurisprudência dos tribunais.
3. Os princípios constitucionais de observância obrigatória e que regulam o caso são os seguintes:
a) dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III);
b) construção de uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo da República e, portanto, de todos os poderes públicos (art. 3º, I);
c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III) (art. 170, VII);
d) promover o bem de todos sem qualquer preconceito ou discriminação (art. 3º, IV);
e) proibição de tratamento desumano e degradante (art. 5º, III);
f) inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI);
g) inviolabilidade da intimidade, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X);
h) a função social de toda e qualquer forma de propriedade (art. 5º, XXIII), (art. 170, III);
i) o amparo às crianças e adolescentes carentes e a promoção da integração ao mercado de trabalho (art. 203, II e III);
j) política urbana que ordene o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garanta o bem-estar de seus habitantes (art. 182).
4. As regras constitucionais que regulam o caso são as seguintes:
a) A Constituição Federal estabelece a competência administrativa comum da União dos Estados e dos Municípios para zelar pela guarda e observância da Lei Maior;
b) combater a pobreza e os fatores de marginalização promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
c) promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, I, IX e X).
5. É fundamental lembrar que a ordem jurídica não pode ser parcialmente observada, tampouco pode o intérprete escolher os princípios ou regras que mais lhe agradem, abandonando outros que não se ajustem ao seu desejo.
6. Importante lembrar também que a diferença entre regra e princípio, segundo a doutrina atual, está centrada em dois aspectos principais:
a) a regra tem um enunciado mais detalhado e específico para uma situação, enquanto o princípio tem um enunciado genérico;
b) a regra, portanto, se aplica a uma situação específica, enquanto o princípio tende a ser aplicado a todas as situações, pois seu grau de abrangência no ordenamento jurídico é bem maior (ex: princípio da igualdade, liberdade, soberania, dignidade devem, entre outros, ser permanentemente observados);
c) em caso de conflitos de regras, uma anula a outra (a lei no tempo e espaço, a hierarquia das leis); já no caso de conflito entre princípios a solução só é encontrada no caso concreto, não havendo revogação de um pelo outro, mas o afastamento do princípio, que, se aplicado, comprometerá a integridade e, portanto, a coerência do sistema. O afastamento desse princípio não implica sua revogação; ele continua válido e aplicável a todas as outras situações;
d) no caso de conflito entre regras e princípios, esses se sobrepõem às regras sem, necessariamente implicar na revogação destas.
7. Isso posto, temos que o caso em análise, ao ser solucionado, tem que levar em consideração a obrigatória observância de todos os princípios constitucionais, mesmo que isso implique o afastamento ou a não-aplicação de uma regra que, diante do caso, se fosse aplicada, poderia contrariar um ou mais princípios.
8. Postas as bases constitucionais e hermenêuticas, devemos trazer essas reflexões para a realidade do caso antes de analisarmos finalmente a legislação infraconstitucional.
9. Temos, portanto, que as pessoas que hoje habitam sob o viaduto Silva Lobo são amparadas pela Constituição e têm direitos perante o Estado, seja em nível federal, estadual e municipal, e por terem negados direitos básicos e fundamentais recebem atenção especial da Constituição no sentido de criação de políticas públicas includentes.
10. Essas políticas, quando elaboradas, devem respeitar as regras e princípios constitucionais e infraconstitucionais simultaneamente. Levando em consideração os princípios e regras acima enumerados, podemos concluir, por exemplo, que a única hipótese de retirar essas pessoas do local é oferecendo-lhe outro local para moradia onde possam conseguir sustento igual ou melhor, onde as crianças possam freqüentar escola igual ou melhor e desde que a solução seja uma solução dialógica em que seja respeitada a vontade, a opinião e, logo, a dignidade das pessoas envolvidas. Políticas meramente assistencialistas que tratam as pessoas como objetos sem vontade não tem amparo nos fundamentos do Estado Democrático de Direito que a Constituição cria.
11. Podemos concluir, parcialmente, que se houvesse regra infraconstitucional que autorizasse a retirada imediata dessas pessoas do local, essa regra deveria ter sua aplicação afastada, só podendo ser observada quando satisfeitas as exigências dos princípios constitucionais obrigatórios acima citados. A solução justa expressa na norma de conduta da Prefeitura deverá ser construída observando a integridade do sistema jurídico constitucional e a sua coerência.
12. Passando à análise da legislação infraconstitucional, devemos encontrar a resposta para uma última pergunta final, já claramente respondida no parecer da Dra. Liana Portilho Mattos: o Município pode permitir o levantamento de construções no local?
13. Para responder a essa questão, é necessária a análise da legislação infraconstitucional, que deve ser interpretada observando-se os princípios e regras que integram o sistema jurídico constitucional em um sistema coerente e com finalidade clara.
14. Como já analisado pela Dra. Liana Portilho, e por esse motivo não vou repetir, a questão deve começar a ser respondida pelo Estatuto da Cidade, presente na Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. O Estatuto, nos seus objetivos e finalidades, já facilita a fundamentação da resposta positiva da pergunta quando oferece ao Município instrumentos para a implementação de políticas urbanas que levem em conta os princípios nele contidos e que consagram o direito à cidade, ao desenvolvimento sustentável, à gestão democrática da cidade, à justa distribuição dos benefícios e do ônus decorrentes da urbanização e a garantia da posse de milhares de indivíduos cujo acesso ao solo urbano e à moradia é obtido informalmente, num habitat autoconstruído, vulnerável, precário e inseguro.(cito o parecer da Dra Liana Portilho).
15. A Medida Provisória n. 2.220 de 4 de setembro de 2001, oferece a garantia da posse de imóvel público para aquelas pessoas que até 30 de junho de 2001 possuiu como seu, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, até 250 metros quadrados de imóvel público situado em área urbana para moradia, desde que não seja proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural. Importante notar que a medida provisória não faz nenhuma distinção quanto ao tipo de imóvel, o que é óbvio diante do objetivo da norma e da realidade da moradia nos grandes centros urbanos.
16. O art. 5º da referida Medida Provisória reforça o que dito quando faculta ao Poder Público assegurar o exercício do direito a concessão de uso especial para fins de moradia quando se tratar de ocupação de imóvel de uso comum do povo. Esse dispositivo confirma a possibilidade de aplicação dos arts. 1º e 2º da Medida Provisória n. 2.220/2001, ao caso que estudamos. Por outro lado, autoriza a negociação de outro local nesse caso. Para essa situação aplica-se o que foi estudado neste parecer no que diz respeito à integridade e à coerência do sistema de princípios do nosso sistema jurídico constitucional, ou seja, o Município só poderá retirar essas pessoas respeitados os princípios constitucionais conforme mencionamos no item 11 desse parecer, acrescentando que não há nenhum motivo para a agressão da destruição da moradia em processo de construção, uma vez que não há criminalidade no local, não há drogas, não há, enfim, nenhum prejuízo ou comprometimento de nenhum direito dos cidadãos da cidade de Belo Horizonte que fundamente a retirada daquelas pessoas. Aliás, são fartas as motivações de sua permanência.
CONCLUSÃO
Diante de toda a argumentação aqui desenvolvida, posso concluir com tranqüilidade que:
a) os moradores do Viaduto Silva Lobo não podem ser simplesmente retirados de seu domicílio inviolável (sua moradia) por ser ato atentatório a diversas normas constitucionais;
b) na hipótese de aplicação do art. 3º da Medida Provisória n. 2.220/2001, só poderão ser retirados com a concordância de todos os moradores e desde que oferecida condição de renda e sobrevivência, educação e moradia igual ou superior;
c) é possível, diante da Constituição, do Estatuto da Cidade e da Medida Provisória 2.220/2001, o Município autorizar a construção e a habitação do local sob o Viaduto Silva Lobo. Aliás, não é só possível, mas é a única conduta constitucional e legal a ser adotada neste momento;
d) finalmente, não reconhecendo o Município o direito ao título de concessão de uso especial aos moradores, esse direito poderá ser reconhecido pelo Poder Judiciário, com a responsabilização do Município em caso de ação administrativa precipitada e inconstitucional.
Belo Horizonte, 15 de abril de 2002.
JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES
Professor Doutor em Direito Constitucional
UFMG - PUC-MG
PARECER 2
Interessados: moradores da Rua Desengano, Vila Acaba Mundo, Belo Horizonte.
Processo: Ação Rescisória em curso no Tribunal de Alçada de Minas Gerais, da sentença transitada em julgado na Ação Reivindicatória, Processo n. 0024.02.820.603-5, 20ª Vara cível da comarca de Belo Horizonte.
Assunto: Interpretação conforme a Constituição Federal do art. 82 do CPC.
DOS FATOS
Em 27 de setembro de 2004, diversos moradores da Rua Desengano, Vila Acaba Mundo, em Belo Horizonte, ingressaram com uma Ação Rescisória no Tribunal de Alçada de Minas Gerais, visando rescindir a sentença transitada em julgado na Ação Reivindicatória, processo n. 0024.02.820.603-5, da 20ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte.
Os principais argumentos dos autores da Ação Rescisória, que ingressaram em juízo como terceiros prejudicados, conforme previsto no art. 485 do CPC, foram:
a) ausência de citação do Ministério Público;
b) inexistência de pedido certo ou determinado;
c) falta de citação dos cônjuges dos réus na sentença rescindenda.
Na verdade, a área, objeto do litígio é um espaço urbano que se tornou extremamente valorizado dada a proximidade da Praça JK, entre os bairros Mangabeiras e Belvedere, em Belo Horizonte. As famílias de baixa renda moram em barracos precariamente construídos e não têm abastecimento de água tratada, energia elétrica, nem mesmo logradouro de acesso que lhes permita possuir um endereço reconhecido. A parte mais antiga da Vila Acaba Mundo já foi urbanizada pela Prefeitura de BH em parceria com as mineradoras que atuam na área - Magnesita e Lagoa Seca -, apesar de não ter havido a regularização fundiária. A Urbel tem feito reuniões com a população local com esse objetivo.
É importante ressaltar que a área, hoje ocupada pelas famílias da Rua Desengano, não estava cercada, conforme determina o Código de Postura municipal. Assim, mesmo tendo algumas faixas de risco, foi sendo ocupada pelos “Sem Teto” sem que os “ditos proprietários” ou o Poder Público tomassem qualquer medida para evitar a ocupação irregular.
O juiz relator concedeu medida liminar suspendendo a execução da sentença que mandava desocupar os barracos de uns poucos moradores, aqueles contra os quais transitou a sentença em 1ª instância. Um fato relevante é que esses moradores contra os quais foi julgada procedente a ação reivindicatória não tiveram em nenhum momento a representação por advogado (art. 133 da CF), apenas a negativa geral por parte do defensor público, nomeado como curador à lide.
Aberta vista ao Ministério Público, o procurador Luiz Antônio de S.P. Ricardo, transcreveu diversas jurisprudências em que fica evidenciada a polêmica criada nos tribunais brasileiros sobre a necessária participação do Ministério Público nos conflitos agrários urbanos. No entanto, quando lemos atentamente o inciso III do art. 82 do CPC, artigo que já teve mudança na redação original, vemos que ele aponta para a necessária participação do Ministério Público quando a qualidade das partes e a natureza da lide o exigirem, e não apenas em questões de posse pela terra. É obvio que os governantes têm de dar uma atenção especial hoje aos diversos conflitos existentes pela posse da terra, não apenas rural, mas também os conflitos urbanos, haja vista as freqüentes mortes como aconteceu recentemente em Goiânia.
Em 25 de fevereiro, foi juntado aos autos da Ação Rescisória petição de especificação de provas protestando-se pela produção de provas testemunhal, documental e pericial.
DO DIREITO
O art. 82 do Código de Processo Civil dispõe:
Art. 82. Compete o Ministério Público intervir:
I- nas causas em que há interesses de incapazes;
II- nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de ultima vontade;
III- nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.
O Ministério Público, na Constituição de 1988, recebeu funções de fiscalização e proteção dos direitos humanos e da democracia que projetam, esta instituição, muito além daquelas funções que exercia antes da Constituição em vigor.
O art. 127 da Constituição Federal de forma expressa dispõe que o Ministério Público é instituição permanente essencial à função jurisdicional e responsável pela defesa da ordem jurídica, ou seja, do sistema jurídico que tem como fundamento a Constituição, e deve ser lido e interpretado sempre segundo a Constituição além da proteção do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ou, em outras palavras, da proteção aos Direitos Humanos, visto que os direitos sociais e individuais são dois dos grupos de direitos fundamentais que compõem os direitos humanos (utilizamos direitos fundamentais como sinônimos de direitos humanos na perspectiva constitucional), aos quais somamos os direitos políticos e econômicos, direitos interdependentes e indivisíveis.
A proteção dos direitos fundamentais não é faculdade mas dever, e o texto confirma ao mencionar a indisponibilidade destes direitos. O Ministério Público, diante do art. 82 do CPC lido sob a lógica do art. 127 da Constituição Federal, tem o dever de intervir para defender direitos individuais e sociais indisponíveis como o direito a uma vida digna, o direito à liberdade, o direito a moradia, o direito à inviolabilidade do domicílio, o direito à integridade física e moral; o direito ao trabalho, além de outros que se encontram direta ou indiretamente envolvidos neste caso.
Não pode o Ministério Público deixar de assumir suas importantes prerrogativas constitucionais que colocam essa instituição com status de poder, de função autônoma não subordinada a nenhum dos três poderes tradicionais.
O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO FUNÇÃO
AUTONOMA DE FISCALIZAÇÃO E DEFESA
DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Um dos princípios fundamentais da democracia moderna é o da separação de poderes. A idéia da separação de poderes para evitar a concentração absoluta de poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto que precede as revoluções burguesas, fundamenta-se nas teorias de John Locke e de Montesquieu. Imaginou-se um mecanismo que buscasse evitar essa concentração de poderes, em que cada uma das funções do Estado seria de responsabilidade de um órgão ou de um grupo de órgãos. Esse mecanismo será aperfeiçoado posteriormente com a criação de mecanismo de freios e contrapesos, em que esses três poderes que reúnem órgãos encarregados primordialmente de funções legislativas, administrativas e judiciárias pudessem se controlar. Esses mecanismos de controle mútuo, se construídos de maneira adequada e equilibrada, e se implementados e aplicados de forma correta e não distorcida, permitirá que os poderes sejam independentes (a palavra correta é autônomo e não independente), não existindo a supremacia de um em relação ao outro.
Com a evolução do Estado moderno, percebemos que a idéia de tripartição de poderes se tornou insuficiente para dar conta das necessidades de controle democrático do exercício do poder, sendo necessário superar a idéia de três poderes para se chegar a uma organização de órgãos autônomos reunidos em mais funções do que as três originais. Essa idéia vem se afirmando em uma prática diária de órgãos de fiscalização essenciais à democracia como os Tribunais de Contas e, principalmente, o Ministério Público. Ora, por mais esforço que os teóricos tenham feito, o encaixe desses órgãos autônomos em um dos três poderes é absolutamente artificial e, mais, inadequado.
O Ministério Público recebeu na Constituição de 1988 uma autonomia especial que lhe permite proteger, fiscalizando o respeito à lei e à Constituição, e, logo, aos direitos fundamentais da pessoa, ao patrimônio público, histórico, ao meio ambiente, aos direitos humanos, etc. Para exercer de forma adequada suas funções constitucionais, o Ministério Público não pode estar vinculado a nenhum dos poderes tradicionais, especialmente porque sua função preponderante é fiscalizar e proteger a democracia e os direitos fundamentais e não de legislar, administrar, governar, ou jurisdicizar.
Embora o constituinte de 1987-1988 não tenha dito expressamente tratar-se o Ministério Público de um quarto poder, o texto constitucional imprime força semelhante ao conceder-lhe autonomia funcional de caráter especial. Qualquer tentativa de subordinar essa função de fiscalização e defesa de direitos fundamentais típica do Ministério Público a qualquer outra função é tentativa de reduzir os mecanismos de controle democrático e, logo, inconstitucional.
DA OBRIGATORIEDADE DA INTERPRETAÇÃO
DA NORMA INFRACONSTITUCIONAL SEGUNDO
A NORMA CONSTITUCIONAL: O SISTEMA
JURÍDICO INTEGRAL E COERENTE
O Direito Constitucional tem evoluído com grande velocidade nesses anos, e com esta evolução a compreensão do significado do que é Constituição muda a partir de exigências de um mundo dinâmico e complexo. Constituição não é texto e Direito não é regra, e não pode ser assim considerado, como ocorria no passado, sob pena de se tornar obsoleto. É inimaginável a possibilidade de o parlamento acompanhar e prever todas as possíveis situações fáticas decorrentes das mudanças sociais rápidas, e muitas vezes, radicais.
Diante deste mundo surpreendente, o desafio é perceber sua complexidade, sua diversidade e sua relatividade. Diante disso uma nova consciência jurídica se afirma. A superação de um legalismo simplificador é exigência do nosso tempo. O Direito não pode ser resumido a regra, pois não há a possibilidade de previsão de regras para solucionar todos os conflitos de um mundo complexo. O Direito principiológico vinculado à história, vinculado ao caso concreto, tornou-se uma exigência democrática.
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Nesse sentido, um texto significa atribuir sentidos e atribuir sentidos significa atribuir valores, os quais mudam com a sociedade. A sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando a sociedade muda, mudam-se os valores, logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto, passamos atribuir novos significados.
Esse é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional ampla ou, melhor, o fato de que toda a jurisdição tem de ser uma jurisdição constitucional, uma vez que não se pode ler a lei infraconstitucional contra a Constituição, o que seria uma interpretação inconstitucional.
A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto por si só não existe; ele só passa a existir quando alguém lê, e quando isso ocorre, necessariamente, quem lê e atribui sentido o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.
Pode-se imaginar a partir daí que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso também é fato. O que cabe ao operador do direito buscar é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com essa compreensão. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo é uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo autoritário.
Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica.
O que vem ocorrendo em termos de jurisdição constitucional ampla em nossos tribunais reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação, e não texto. Essa compreensão nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação; não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.
CONCLUSÃO
1. Mencionamos, em primeiro lugar, o texto do Código de Processo Civil que menciona expressamente a previsão de intervenção do Ministério Público nas causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade das partes.
2. Os fatos que originaram o processo demonstram com clareza o interesse público e a ameaça a diversos direitos fundamentais de diversas pessoas, o que reforça o enquadramento no artigo 82 do Código de Processo Civil.
3. Demonstramos que a Constituição de 1988 criou um Ministério Público que vai muito além de suas funções históricas passadas, pois é uma instituição autônoma de fiscalização e defesa de direitos indisponíveis.
4. A defesa de direitos indisponíveis não é uma faculdade, mas uma obrigação.
5. Demonstramos, posteriormente, que a norma infraconstitucional, seja ela qual for, deve ser lida de acordo com a Constituição sempre. Toda jurisdição é constitucional; pois o ordenamento jurídico é um sistema íntegro e coerente cujo fundamento é a Constituição.
6. A integridade desse sistema e sua coerência é condição fundamental para permitir que o direito responda às mudanças rápidas e às complexidades sociais contemporâneas.
Tudo exposto, podemos perceber, com clareza, que o art. 82 do Código de Processo Civil, lido corretamente de acordo com os mandamentos constitucionais, especialmente o art. 127 e os diversos artigos que dispõem sobre os direitos sociais e individuais fundamentais, impõe como obrigatória a intervenção o Ministério Público na defesa do interesse público, claramente expresso no conflito social que gera a necessidade de proteção dos direitos fundamentais ameaçados no caso que gerou o processo mencionado.
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães
Professor do mestrado e doutorado da PUC-Minas e da UFMG e Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOSé LUIZ QUADROS DE MAGALHãES, . O direito à cidade: casos brasileiros Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 set 2008, 13:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/peças jurídicas/15065/o-direito-a-cidade-casos-brasileiros. Acesso em: 22 dez 2024.
Por: Conteúdo Jurídico
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